SANTIDADE
E HUMANIDADE
Nivaldo Mossato
Muito tenho ouvido, principalmente
entre pessoas que buscam a santidade ou, de certa forma, procuram vivenciar
mais fortemente uma espiritualidade, que para sermos santos, cotidianamente,
precisamos perder nossa humanidade.
Segundo este entendimento, o que nos impede de sermos santos é tão somente
aquilo que somos no decorrer da nossa experiência no mundo, ou seja, nós
mesmos. Despojar do ‘meu humano’ seria, portanto, o caminho à santidade.
A santidade, segundo este
conceito, parte do princípio que, ao despojarmos de nossa humanidade, podemos alcançar a pureza necessária
para que a santidade se realize em nós. Por mais difícil que seja perdermos
nossa ‘humanidade’ – e o é! - ao
fazê-lo, estaríamos prontos para receber em nós o Santo, o Divino. A humanidade
- nesse caso a nossa vontade e tudo aquilo que acumulamos de estrutura e
conhecimento ao longo dos séculos - estaria atrelada ao lado obscuro que cada
pessoa traz em si mesmo, portanto, humanidade seria igual a imperfeição, que
por sua vez nos levaria ao conceito de não santidade, que nos levaria ao
conceito de pecado. Pecado é igual a morte!
Creio haver certa incoerência a
respeito deste conceito: ele próprio aniquilaria, a meu ver, toda e qualquer
possibilidade de experienciarmos a santidade no aqui-agora, no momento presente
da nossa existência. Ficaríamos presos a uma expectativa de que, para
alcançarmos uma vida plena no amor necessitaríamos passar pela morte física,
considerando que somos seres imperfeitos no amor, seres em construção que, a
cada instante se renova através do seu existir, do seu experienciar, do seu
ser-no-mundo.
Santidade, segundo Igino Giordani
(1) é ‘estar a caminho’. Esse ‘estar a caminho’
nos leva de encontro a nossa humanidade, a nossa experiência cotidiana de
existir, de estar em relação. É um constante recomeçar, um cair e levantar-se
que, à medida que o experienciamos no amor, nos humanizamos e nos tornamos
aptos à santidade. Giordani nos revela em seu livro ‘Diário de Fogo’(1986), que
‘separar-se do mundo não significa separar-se dos homens (...); os homens são
imagem de Cristo, teus irmãos resgatados por meio de um único sangue, de tal
forma que separar-se deles equivale a renegar o parentesco divino (...)’. E
revela ainda em outro escrito que ‘a
santidade não é um fenômeno arcaico, reservado aos claustros (...), é o fato
central da nossa experiência, do nosso tempo. (...) descobri a santidade no
nosso meio’. Creio, portanto, que podemos sim, nos santificar na medida em
que nos humanizamos nas relações, pois, estar em profunda relação é fazer
brotar o divino no ‘entre’ dessa relação, a santidade no nosso meio.
Humanidade e santidade não são
opostos. São interstícios que se complementam, ou seja, que se utilizam do
vazio, do espaço deixado entre um e Outro para ser, através do seu existir. São
partes de um mesmo organismo, de um mesmo ser-no-mundo. Partículas indivisíveis
de um mesmo corpo que, na medida em que se autoregula experimenta em seu
existir a plenitude de um ser completo, uma totalidade de corpo-mente-espírito.
Alcançamos a santidade na medida que experienciamos, no amor, essa nossa
‘totalidade’, nossa humanidade.
Humanizar-se, torna-se, portanto,
um estreito caminho para a santidade. Um caminho que podemos simbolizar por uma
imagem que me é bastante significativa a este respeito que é aquela formulada
por Chiara Lubich(2) de
um sol e seus raios convergentes. O sol simbolizando a Deus-Amor e os raios
convergentes os seres humanos. Na medida em que convergimos a Deus, também o
fazemos em relação ao Outro que nos é próximo. Na medida em que nos
aproximamos, no amor, do Outro, também nos aproximamos de Deus.
Para Brennan Manning(3) ‘a espiritualidade não é um compartimento ou esfera da vida. Antes, é um
modo de viver – o processo da vida a partir da perspectiva da fé. A santidade
está em descobrir, perseguir e viver o ‘eu’ verdadeiro’. Citando Thomas Merton(4), Manning confirma: ‘(...)o estágio mais elevado de
desenvolvimento espiritual consiste em ser ‘comum’, em se tornar um homem
pleno, e de tal maneira que poucos seres humanos conseguem ser, tão simples e
naturalmente, eles mesmos (...)’.
Alcançar a santidade é, portanto,
alcançar o Outro, aquele que caminha ao meu lado. Alcançá-lo, no amor, é, ao
mesmo tempo, humanizá-lo e humanizar-se.
É na relação com o Outro, com aquele que, cotidianamente está em contato
comigo, que me humanizo. É da qualidade
desta relação de amor que nasce a possibilidade (ou não!) de santificação.
Santidade, aqui, não é o que
trago dentro de mim, mas o que faço nascer na relação com o Outro. O santo que
há em mim só se deixará ver, só fluirá na relação com o Outro. Martin Buber(5) descreve essa relação como
‘EU-TU’, a única forma de fazer surgir, deixar fluir no ‘entre’ da relação o
divino, o sagrado. É do verdadeiro encontro EU-TU, EU-OUTRO, que emerge do
humano o divino, o sagrado.
Clarice Lispector(6) descreve maravilhosamente
este ‘entre’ que há nas relações onde, de forma vital, nos interstícios da
matéria se descobre o ‘mistério de fogo’ que nos permite fazer contato com
nossa própria identidade e, de posse deste vazio, permitir-se penetrar na mais
profunda realidade: Deus! Assim descreve: (...)
entrei no inexpressivo que sempre foi minha busca cega e secreta (...). Entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois (...). Entre duas notas de
música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de
areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um
sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a
linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo (...)’.
É no ‘entre’, no encontro de duas
matérias que a luz emerge. É mistério e fogo. Um fogo que faz queimar o humano
e deixa brotar a graça. Encontro é graça. Sem graça o divino não resplandece.
Encontrar-se é retroalimentar-se. É o divino que se faz no humano, no entre
que, na graça do encontro faz surgir um terceiro elemento: a santidade. Um
terceiro elemento que não é um nem Outro, mas os contém. Mistério e fogo entre
dois grãos de areia. A melodia que brota no ‘entre’ de duas notas musicais.
Música que não fere os ouvidos, pois, santifica-se ao fazer brotar o divino
naqueles que, plenamente humanizados, cônscios de si mesmos, inteiros e
integrados, entregam-se ao mistério que surge.
Humanizar-se é, portanto,
encontrar-se. Não um encontro de superfície, mas de profundidade. Não somente
um encontro de corpos, mas de almas. Almas humanas que, de posse de um
si-mesmo, são capazes de experienciar a necessidade do Outro. Almas que se
fundem, mas que são capazes de, ao findar o contato profundo com o Outro,
restabelecer a própria individualidade; transformada sim pelo encontro, porém,
protegida em sua unicidade. É uma constante imersão autorizada na necessidade
do Outro, onde, de posse dessa necessidade, fazemos uma profunda cisão em seu
‘EU’ e permitimos que ele a faça em nós, de forma que, ao findar o encontro,
retorno à minha realidade mantendo minha unicidade, minha individualidade,
transformada pelo encontro. Eu sou eu, o Outro é o Outro, porém, novos, pois,
trazemos em nós o fruto da relação, o divino que brotou do ‘entre’, o mistério
de fogo que deixou em nós sua melodia.
Santificar-se é experienciar
conscientemente o Outro. É penetrar profundamente na experiência daquele que,
por amor, me é dado como instrumento, na mesma medida em que me faço
instrumento para ele. É na reciprocidade desta relação que me santifico.
Estamos irremediavelmente encerrados nela. Relação que exige reciprocidade, sem
esta, torna-se monólogo, ou pior: imposição da minha vontade sobre o Outro.
É bíblico o mandamento: ‘amar o próximo como a ti mesmo’(7). O amor aqui não está no ‘próximo’, nem no ‘ti mesmo’.
Está no ‘como’, na relação entre um e
outro. No terceiro elemento que surge na relação, que não é um, nem outro, mas
que os contém. Um amor cego não é amor. Quando não exclui a mim da relação,
exclui o Outro. Sem a consciência de quem realmente sou, de como estou em
relação, não consigo ter a consciência do Outro. Sem delimitar meu espaço, no
momento presente, no agora da relação, não reconheço e nem delimito o espaço do
Outro: invado, imponho, desrespeito, anulo, escravizo. Portanto, fico
incapacitado para o Amor, para a santidade.
É na presença do divino entre nós
que nos santificamos. Não ‘somos santos’. Nos santificamos na presença D’Aquele
que é Santo. Não somos Amor. Somos os amados. É tomando posse dessa condição de
amados que podemos tomar posse da nossa condição humana e permitir que nossa
humanidade, na condição de amados, seja santificada. Nossa santidade é no ‘estar em relação’, é no estar na
presença do divino que se manifesta no ‘entre’ da relação. É na realização da
promessa de Cristo - ‘onde dois ou mais
estiver reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles’( 8) – que nos santificamos.
Santidade é um estado de graça e, poder estar na graça já é uma graça.
O testamento de Cristo: ‘que todos sejam um, como Eu e o Pai somos um’(9), é a prova mais contundente que o nosso caminho para a
santidade passa, por primeiro(10),
na relação humanizadora com o Outro. Para que dois ou mais possa ser um, faz-se
necessário ‘deixar de ser, para que o
Outro seja’. No entanto, deixar de ser não significa ‘perder a humanidade’,
mas deixar morrer a própria vontade para que, de posse da minha totalidade,
consciente da minha humanidade, escolher, na liberdade, não ser para que o
Outro seja.
Deus, depondo sua própria
divindade, se fez homem – Jesus Cristo – e como tal, vivenciou, experienciou
nossa humanidade e nela a santificou em profundo relacionamento de amor
conosco. Depois, quando crucificado, depôs novamente sua divindade e,
perdendo-a, no auge da sua dor – meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste?(11) - assumiu nossos
pecados, entregando-se à morte, ressuscitando ao terceiro dia. Depôs sua
divindade para assumir nossa humanidade para que, através dela nos
possibilitasse reatar a aliança com o Pai. Aqui cabe, portanto, uma questão: ‘se
Deus, por intermédio de Jesus, escolheu depor-se da própria divindade ao
tornar-se homem, para que, através da sua experiência humanizada pudesse abrir-nos
caminho para a santidade, mostrando-nos que tal caminho passa por primeiro por
Ele mesmo - ninguém vem ao Pai senão por mim (12) – e pelo
amor ao próximo – amai-vos uns aos outros
como eu vos amei(13) – sabendo-se que a
única forma possível de se amar concretamente é na relação com o Outro, não
seria esta a via primeira de santificação?’ Eis aqui, portanto, a essência da
santidade que me parece nos ser permitida: experienciar com profundidade nossa
humanidade e, cônscios de si mesmo em relação, deixar-se ‘não ser’ para alcançar
o Outro na sua mais profunda necessidade, fazendo nascer no entre da relação, o
divino ressuscitado.
Humanizar-se é reconhecer-se em
relação. É alcançar a consciência emocionada de si mesmo, para que, de posse
dela, possa alcançar a consciência emocionada do Outro, aquele que, por amor,
me foi dado como instrumento de santidade. Somente a posse deste instrumento é
que me permite ‘deixar de ser, para que o
Outro seja’. Antes que essa consciência ocorra me é impossível amar em
plenitude, despretensiosamente, sem exigir nada em troca, desprovido de algum
interesse.
Santo Agostinho, em sua busca
pessoal pela santidade, em profundo relacionamento consigo e com aqueles que
eram colocados divinamente em seu caminho, ao ser indagado sobre ‘como alcançar
a santidade na relação com o Outro, ou seja, em outras palavras, como
santificar-se a serviço do Outro’, respondeu: “Ama e faze o que queres”. Eis aqui a liberdade do amor, a possibilidade de
sermos nós mesmos em relação: basta-nos estar no Amor! Em outro momento escreveu:
‘(...) pode haver somente dois amores
fundamentais: amar a Deus até esquecer de si ou amar-se até esquecer e negar a
Deus’. Para que possamos amar a Deus se esquecendo deste ‘si mesmo’ faz-se
necessário conhecê-lo (o si-mesmo), tomar posse, ter plena consciência deste
‘eu’. Somente após ter tomado posse, conscientemente, deste meu ‘eu verdadeiro’
é que posso decidir deixá-lo ‘não existir’ para que o ‘Outro exista’; caminho
este que nos leva à santidade.
Deixar de ser exige antes de tudo
que sejamos! Ninguém deixa de ser aquilo que não é. Se não é, não é. Uma folha
de papel só pode deixar de ser uma folha de papel depois de ser uma folha de
papel. Enquanto for celulose, não é papel. Não pode deixar de ser o que ainda
não é: papel. Eu só posso deixar de ser por opção, por livre escolha, por uma
decisão somente minha, particularmente minha. Para isso, precisamos agir como
nos ensina Tomás de Kempis(14):
‘Primeiro conserva-te em paz e depois
poderás pacificar os outros’. Preciso
ter consciência de quem sou, de como estou em relação, para depois alcançar a consciência
do Outro. Não uma consciência cognitiva, mas emocionada, carregada de afeto. De
posse da consciência emocionada de mim mesmo, posso sim, por opção e escolha,
livremente, perder minha própria vontade em virtude de ser amor para com o
Outro.
É como a solidão: se escolhida, é
um santo remédio para interiorizar-me em busca da relação íntima com minhas
próprias necessidades, com o Outro e com Deus. Estar só consigo mesmo é, muitas
vezes, um encontro de plenitude, crescimento e felicidade. Se imposta, a
solidão é um terrível sofrimento que nos anula como pessoas, levando-nos ao
sentimento de exclusão, à depressão profunda e até mesmo ao suicídio.
A meu ver, santidade se faz na
escolha consciente de estar em profunda relação com o Outro, ao ponto de,
gerando reciprocidade, fazer nascer no entre da relação o divino que reside em
cada um de nós. É este divino, explicitado no entre de uma profunda relação de
humanidade que nos habilita à santidade que, por sua vez, nasce da capacidade
de cada um de vivenciar, experienciar o paradoxo do amor: deixar morrer meu próprio ‘eu’ para que o Cristo se faça vivo em mim;
portanto, santificar-se é deixar de ser – por livre e consciente escolha - para
que o Outro seja! Só assim podemos nos apossar do divino, aquele mistério
de fogo que deixou em nós sua melodia.
(1) Escritor e político italiano.
Co-fundador do Movimento dos Focalares (1894 – 1980).
·
Giordane,
Igino. Diário de fogo. São Paulo:
Cidade Nova, 1986.
·
Sorgi,
Tommaso. Igino Giordane: Sinal dos
tempos novos. São Paulo: Cidade Nova, 1994.
(2) Fundadora do Movimento dos Focolares
(1924 – 2008).
·
Lubich,
Chiara. Escritos Espirituais. São
Paulo: Cidade Nova, 1983.
·
Lubich,
Chiara. Meditações. São Paulo: Cidade
Nova, 1987.
(3) Manning, Brennan. O Impostor que vive em mim. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.
(4) Merton, Thomas. The Hidden Ground of
Love: letters. Nova York: Farrar, Strauss, Giroux, 1985.
(5) BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução Newton A. V. Zuben. São Paulo: Centauro, 2001.
(6) Lispector, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de
Janeiro:J.Olimpio, 1977.
(7) Mt 22, 39.
(8) Mt 18, 20.
(9) Jo 17,21.
(10) ‘Por primeiro’, pois, nossa primeira
relação de humanização e santidade ocorre com a mãe – ou cuidador - nos
primeiros anos de vida.
(11) Mt. 27,46.
(12) Jo 14,6.
(13) Jo 15,12.
(14) Kempis, Tomás. Imitação de Cristo. São Paulo: Círculo do Livro, 1979. (Escrito por
volta de 1420 a 1470).
Nivaldo, a degustação de cada frase, cada palavra e cada letrinha por você escritas, me deixou com uma sensação muito boa de saciedade (de plenitude)... Vai ver porque foi mesmo um alimento... um alimento para a alma... e que já está fazendo parte de mim!
ResponderExcluirOlá, Bruna! Obrigado pelo retorno. Um comentário com tamanha profundidade é sempre um grande incentivo a continuarmos a exposição de nossas idéias e crenças. Lembrando, claro, que se algo tocou nossa alma é que tal conteúdo já estava lá, só faltava um 'click' para que pudéssemos fazer um contato pleno com ele, alimentando-o! Toda paz!
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